A estética não substitui a consciência: estamos perdendo referências de mulheres com pensamento crítico?
Nesses últimos tempos, com tantas questões políticas e sociais no mundo que vêm impactando diretamente as mulheres, me pego constantemente supreendida com o silêncio de tantas influenciadoras, blogueiras e figuras públicas de modo geral. Venho me impressionando com a forma que, cada vez mais, tantas fingem que nada acontece ao seu redor, como se vivessem realmente em uma bolha. Não é sobre exigir militância o tempo inteiro, mas sobre reconhecer que ignorar a realidade já é, em si, uma forma de posicionamento. E essa neutralidade estética, maquiada de leveza, anda custando caro para todas nós. A pergunta que deixo para começar esse texto é: estamos trocando pensamento crítico por estética vazia?
Vivemos na era da hiperconexão, das redes sociais, da estética impecável. Quando passamos a seguir mulheres não pelas suas ideias, mas somente pela estética que ela passa, pela aparência que ela aparenta viver ou quando nos acostumamos tanto à um conteúdo cheio de “nadas” e de futilidades que o pensamento começa a parecer pesado demais, temos um problema. A alienação se tornou vendável. E isso é estratégico.
Plataformas como Instagram e TikTok não estão preocupadas em expandir nossas consciências. Seus algoritmos foram desenhados para manter a atenção, garantir engajamento e, claro, gerar lucro. Vivemos hoje cercadas por filtros invisíveis que selecionam o que vemos, com base no que já curtimos antes. Ou seja: vemos o que já pensamos. Lemos o que confirma nossas ideias. Consumimos o que reforça nossos desejos. A internet que poderia ser uma janela para o mundo se tornou um espelho, que devolve a nossa própria imagem, filtrada e polida, até parecer perfeita.
É nesse ambiente de bolhas confortáveis que crescem as it girls da alienação. Não por burrice, mas por estratégia de sobrevivência digital. O influenciador digital é, antes de tudo, um produto. E como todo produto no capitalismo, ele precisa agradar. Quanto mais neutra, genérica e inofensiva a mensagem, mais ampla será sua aceitação. Por isso, muitas influenciadoras preferem “ficar em cima do muro”, que, diga-se de passagem, é o lugar mais confortável quando o muro é feito de seguidores e contratos publicitários. Mas será mesmo que dá pra ser “neutra” quando nada no mundo é neutro? Será que falar sobre política é só uma questão de gosto pessoal, como escolher a roupa que vai vestir no dia? Será que refletir sobre o impacto das políticas públicas na vida das mulheres é “pesado demais” para o feed?
Não dá pra ser neutra quando ser mulher é pauta política. Quando nossos direitos sexuais e reprodutivos são ameaçados. Quando a violência de gênero aumenta, e os investimentos em saúde mental diminuem. Quando mulheres são as mais afetadas pela precarização do trabalho e ao mesmo tempo as mais invisibilizadas nas discussões feministas mainstream. Quando o feminismo, esvaziado de sua crítica radical, se transforma em slogan para camiseta numa loja de luxo.
Estamos, como sociedade, assistindo à construção de uma nova estética da alienação. Uma alienação que não é ignorância: é comodidade. É marca pessoal. É performance de leveza. É a mercantilização do silêncio. Essa lógica, porém, não é neutra, o ambiente digital não apenas nos mostra o mundo: ele molda como o mundo é percebido. E é nessa moldura que ideias políticas se fortalecem ou são silenciadas. Enquanto isso, mulheres que expõem seus pensamentos críticos à todas as problemáticas que vivemos seguem sendo vistas como “militantes chatas”. Porque problematizam. Porque não sabem falar sem pensar. Porque incomodam a narrativa da leveza sem reflexão. Mas se há algo pior do que incomodar, é deixar de incomodar. É quando nossas referências de mulheres críticas, engajadas e politizadas são substituídas por uma estética silenciosa, que vende bem, mas não transforma nada.
Esse apagamento do pensamento crítico entre as mulheres não acontece sem efeitos. Ele não se limita a uma disputa estética ou simbólica. Ele toca diretamente o que temos de mais íntimo: nossa saúde mental. Quando mulheres passam a ser valorizadas não por sua inteligência ou pensamento, mas por sua beleza, neutralidade e suavidade, há uma violência sutil (mas brutal) sendo operada. Somos convidadas a caber num molde cada vez mais estreito: sermos agradáveis, leves, visivelmente organizadas e emocionalmente estáveis, mas sem jamais parecer excessivamente críticas, indignadas ou engajadas. A mulher que pensa, denuncia, questiona ou sente demais continua sendo, muitas vezes, desautorizada, tratada como “problemática”, “pesada”, “radical”.
A construção de uma feminilidade moldada para o algoritmo gera uma pressão constante para a autoimagem perfeita, o humor equilibrado, o corpo aceitável e a opinião despolitizada. E isso custa caro. Muito caro. O preço é pago em ansiedade, em crises de identidade, em baixa autoestima e em um profundo sentimento de inadequação para todas aquelas que não se encaixam nesse ideal normatizado.
Essa estética do silêncio transforma a alienação em padrão, e o pensamento em ameaça. E o resultado é um tipo de solidão que não se resolve com skincare ou meditação: é a solidão de não se ver representada, de sentir que pensar demais é um defeito, de se questionar se o problema é você ou o mundo, quando, na verdade, o problema é um mundo que se incomoda com mulheres que pensam criticamente.
Não é coincidência que tantas mulheres se sintam mentalmente esgotadas. Somos ensinadas a buscar equilíbrio, mas em cima de uma corda bamba: um equilíbrio impossível entre ser forte e sensível, bonita e crítica, magra e livre, calma e politizada, mas sem parecer “militante demais”. Enquanto isso, as referências que poderiam nos lembrar que não estamos sozinhas, que ser mulher também é se indignar, também é se posicionar, essas referências estão desaparecendo do nosso campo de visão. Não porque não existam, mas porque o algoritmo, o mercado e o medo da rejeição as empurram para fora do holofote.
A saúde mental feminina, portanto, não pode ser pensada separadamente da cultura que nos forma. Não se trata apenas de “problemas individuais”, mas de uma profunda crise simbólica. Precisamos, com urgência, recuperar o direito de sermos mulheres inteiras: que choram, pensam, se revoltam, questionam, criam, inspiram e manifestam outras mulheres.
Por isso, é urgente recuperar outras referências. Relembrar que “divas” também têm lado. Que ser inteligente e bonita não são opostos. Que consciência crítica é sexy. Que dá pra ser sofisticada sem ser superficial. Que dá pra ser “cool” sem ser vazia. Que a mulher interessante não é a que se cala, mas a que pensa e, sobretudo, ousa dizer o que pensa. Nos curar, hoje, é também nos politizar. Nos curar é reconhecer que a estética não substitui a consciência.
Referência de apoio:
DE OLIVEIRA, Sávio Silva; TEZZI, Magda Maria Diniz. O PAPEL DOS INFLUENCIADORES DIGITAIS NA FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA:: a indústria do posicionamento. Revista do Instituto de Ciências Humanas, v. 17, n. 27, p. 362–375, 2021.